segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Convento de Jesus, Aveiro


O percurso monumental pelo antigo Convento de Jesus mostra os espaços conventuais que sobreviveram até aos nossos dias. São, na sua maior parte, espaços sagrados, uma vez que as áreas privadas desapareceram devido às sucessivas obras de adaptação deste edifício a colégio e, posteriormente, a museu. Desapareceram as celas, a enfermaria, a botica, as oficinas e os celeiros. Sobrevivem ainda alguns vestígios das cozinhas na área da actual cafetaria. [nota do museu]



Sobre este espaço conventual escreve o próprio Dr. Alberto Souto [diretor do museu a partir de 1925], sendo notório o entendimento que tem sobre o seu escasso valor técnico e histórico: «[...] Ao mesmo tempo, o edificio do antigo convento de Jesus na sua parte historica e monumental e na parte que serviu a colegio, de pessima construção, desconexo e labirintico, retalhado nos seus baixos e em parte ocupado pelas escolas primarias e pelos armazens, oficinas e arrecadações municipais, e abandonado às inclemencias dos tempos, apresentava aspectos aterradores [...] A parte monumental, o precioso côro de baixo com o seu revestimento de marmores, o claustro simples e gracioso, estavam abismados em cubiculos sem ar, sem luz, sem segurança e sem aspecto. Era preciso [...] melhorar o que era digno de ser admirado [...]»A realização de obras no espaço conventual serão orientadas numa perspectiva de dotar o Museu de novas salas de exposição, não existindo preocupação clara na preservação da história e do ambiente religiosos. 
O entendimento da época sobre as intervenções de restauro não poderá ser dissociado de um movimento fortemente anti-clericalista, que encontramos em muitos homens da I República, em especial quando essas intervenções se efectivam em espaço religioso. Sobre este ideário que se relaciona intimamente com a noção de intervenção em Monumentos Nacionais, escreve Alberto Souto, em 1908, sobre a urgência da República:
«[...] Fazer a República não é derrubar um trono; é mais – acabar com o regime em que temos vivido e que tem arruinado o país, é acabar com todos os restos do passado [...] é promover a prosperidade, é realizar as grandes reformas sociais, é varrer tudo, renovar tudo, purificar tudo [...]».

A capelinha que estava ao lado do côro do tumulo, com entrada pelo arco que dá para o claustro, tambem foi demolida. Assim, alarga-se a entrada para o [...] claustro e dá-se alguma luz a mais ao tumulo cuja sala é muito sombria, humida e mal ventilada.»
O dr. Lourenço Peixinho, presidente da Camara, ofereceu o mozaico para o chão, que ele mesmo escolheu e encomendou em Lisboa. [...]». 

Não será, pois a unificação estilística a grande preocupação do Dr. Alberto Souto, pois é notório que, muitas vezes, para além de pequenas reparações quotidianas, procura "completar" o que se encontra em falta – ou que nunca chegou a ser construído – segundo modelos que, no seu entendimento, melhor se adaptem a cada local, estilo ou função.

Estaremos, assim, bem mais próximos das noções veículadas por Luca Beltrami na sua definição de Restauro Storico. Uma das mais importantes vertentes, e que por diversas vezes poderemos constatar na acção do Dr. Alberto Souto, é a do "projecto-cópia" ou seja a preferência pela recriação arquitectónica do edifício «[...] como ele deveria ser – sem porém nunca o ter sido [...]».

Do Convento nascerá o novo Museu, dotado de instalações à altura de um Museu Nacional com grandes salas de exposição, sendo o claustro, já não o que resta de uma remota vida religiosa, mas um agradável percurso museológico para os visitantes.
Para além do espaço, o Director remodela a ambiência, retirando-lhe alguma da austeridade, pretendendo que se tome uma parte integrante do Museu, chegando, inclusivamente a expor aí algumas peças de estatuária monumental. 

Nesta sua actuação é particularmente curiosa a "apropriação" que faz pela decoração: «[...]Mandei pintar as janelas-portas que dão para este claustro (parte superior) [...] era desolador. Mandei comprar vazos, pedi palmeiras e vasos com sardinheiras à Camara, que m' as mandou logo, bambús etc. e comprei cache-pots [n]as fabricas de faianças de Aveiro. O claustro parece outro. Já pela festa assim estava com vasos e flores e palmeiras e fetos e toda a gente gostou de vêr esta nota de animação e vida que as flores dão no silencio do convento [...]». [fonte]


Atualmente o aspeto do museu é muito mais sóbrio, havendo a preocupação de mostrar uma expsoição coesa (dedicada sobretudo à pintura barroca) do que um amontoado de peças sem ligação entre elas, como nos primeiros tempos:




Hoje em dia ainda há alguns vestígios desse tempo, como a sala onde antigamente as freiras lavavam as mãos antes das refeições:


Muitos dos espaço pertencentes ao antigo convento que sobreviveram estão ricamente decorados em barroco:





Mas o mais impressionante é a igreja:


Foi neste convento que viveu Santa Joana, e onde está sepultada numa urna no coro-baixo:


Existem muitas representações suas no museu, normalmente a pegar num crucifixo:


O presumível crucifixo original está exposto no museu:


Numa nota podemos ler que "segundo a tradição, este pequeno "crucifixo gótico" terá pertencido à Princesa Santa Joana, que o segurava na hora da sua morte". José Hermano Saraiva elaborou um pouco mais o assunto para chegar à conclusão inequívoca que era este o crucifixo de Santa Joana.

Já o diretor do museu, José António Christo, acrescenta que o crucifixo tem "um cabeleira feita com cabelo da Princesa Santa Joana", ao que a entrevistadora, Paula Moura Pinheiro acrescenta "assim rezam as crónicas", respondendo o diretor a rir "assim rezam as crónicas".

Não interessa ao diretor atual do museu se realmente é estritamente rigoroso ou não o que a tradição deixou no Mosteiro de Jesus, independentemente de ser um alegado crucifixo e uma alegada cabeleira ou de esta alegada porta manuelina, construída em 1925 pelo seu antecessor Alberto Souto:


Depois da devoção cega a Santa Joana, e depois do anti-clericalitismo de Alberto Souto, hoje o Museu de Aveiro está aberto a todas as interpretações, abstendo-se de apresentar a sua doutrina oficial. Nele podemos ver o crucifixo de Schrödinger: ao mesmo tempo é e não é o de Santa Joana. Não importa - vale como crucifico gótico. Só por isso já merece figurar no museu.

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Trancoso, distrito da Guarda

Já faz um mês desde que fomos visitar as aldeias históricas. A última paragem foi Trancoso:



Uma nota muito positiva para esta passagem acanhada, acompanhada in situ por uma nota explicativa.


Datado, provavelmente, de Época Moderna (sécs. XV-XVI), o Boeirinho é o único postigo existente na fortificação de Trancoso. Trata-se de uma pequena e estreita abertura de arco pleno, pela qual passa somente uma pessoa de cada vez, possibilitando, deste modo, a entrada controlada de pessoas na vila sempre que as portas da cerca estavam fechadas. Ainda em 1732, ao toque do sino então localizado na Casa da Câmara, as portas da vila eram encerradas e vigiadas por guardas, sendo por este postigo que entravam, depois de Identificados, os que se encontravam fora de muros. Este tipo de vigilância era possível porque, na altura e até meados do séc. XIX, Trancoso permanecia ainda confinado ao Interior das muralhas medievais. Em 1916, a Câmara propôs ao Ministério da Justiça a demolição deste singular postigo, ao que se opuseram alguns populares. Esta é a última notícia de um longo período, Iniciado nos meados do séc. XIX, em que se operaram grandes transformações no urbanismo da vila. Decorrentes da devastação causada pela invasão Francesa (1810), dos intentos de modernização da vila e da incúria de muitos dos seus habitantes, estas alterações traduziram-se também no desmantelamento de parte do sistema defensivo. Procedeu-se, então, à abertura de vários rasgos nas muralhas para melhorar as acessibilidades, como é o caso das Portas Novas, abertas em 1843 para facilitar o acesso às Sortes situadas no Campo, e da abertura existente no Boqueirão, para que as crianças chegassem mais depressa à escola. Também para melhorar os acessos, em 1902, a Porta de S. João e respectiva torre foram demolidas com toda a popa e circunstância, na presença da Vereação da Câmara e de diversas autoridades. Parte da muralha e as sete torres hoje inexistentes foram também demolidas neste período, para utilização da pedra em construções públicas e privadas. 

Duas coisas que a Lídia não gosta: percorrer muralhas, porque tem vertigens, e andar em cima de certos pavimentos que considera poderem vir a cair.  Fizemos o pleno:


É aliás requisito para qualquer aldeia que se intitule de histórica oferecer a possibilidade de trambolhão e queda aparatosa.

Agora vem a parte do post em que me julgo arquivista da Direção Geral do Património e me ponho a organizar a secção de fotografia. Estas duas fotografias ilustram o castelo antes e depois da intervenção da DGEMN:



Não parece das mais drásticas, mas há vários aspetos a considerar. Para já, porquê subir três fiadas de pedra à muralha? Tinha lá as ameias no sítio e tudo... Seriam as ameias uma reconstrução anterior?

Do lado esquerdo aparece a capela-mor da desaparecida Capela de Santa Bárbara, que sofreu um restauro hesitante:



Depois desta fase, foi decidido que havia pedra a mais e foram tiradas as superiores, como se pode ver pela vista geral e por esta atual, tirada por mim (agora estou somente preocupado em meter fotos que ilustrem a evolução do espaço, no entanto quando estou a passear, e porque não conheço de antemão os arquivos da DGEMN, apenas estou a pensar em tirar boas fotografias, razão pela qual agora me remeto quase em exclusivo à DGEMN, tirando quando apanho perspetivas mais bonitas como a da próxima foto).


Qual o critério para a reconstrução da ruína? Que não sobrassem dúvidas aos visitantes que não havia nada de artificial nesta ruína? Que seguia as leis da gravidade e a erosão dos séculos e numa ruína naturalmente perfeita não há lugar para paredes intactas a partir de certa cota? Será que a criação de ruínas é uma ciência exata que tem de ser respeitada pedra por pedra?

O vasto terreiro, hoje vazio, devia conter edificações que a documentação medieval menciona. Sobre a utilização moderna deste castelo, sabemos que a principal tentativa de lhe dar nova função ocorreu nos finais do século XVIII, culminando em 1796 na construção de um depósito de munições [...] na antiga alcáçova, que felizmente nunca chegou a funcionar, vindo a ser demolido (Gomes, 1996) [fonte]


No entanto a DGEMN achou que por ser um castelo não havia lugar para este edifício mas sim para uma torre:


Para começar, mais três fiadas de pedra:


Depois, mandar abaixo e fazer outra vez, mas agora com aparência medieval:




Para quê se levantarem paredes de novo e deixarem os topos por rematar? Não sou só eu com estas dúvidas, como podemos ver pela evolução da obra vista do lado de dentro:




Num primeiro momento, pareceu-se bem fechar a torre até ao caminho que percorre a muralha.


Mas depois não, houve a necessidade veemente de subir a altura da parede. Que se passou, sobrou pedra?

[...] a notável Torre Moçárabe do castelo de Trancoso, testemunho único em Portugal [...] que se conservou ao longo dos anos, tendo sido mais tarde incorporada dentro do perímetro do castelo românico, do séc. XII-XIII, onde passou a desempenhar as funções de Torre de Menagem. No entanto, trata-se de uma construção muito anterior ao séc. XII, como bem denuncia o seu perfil tronco-cónico, a sua porta em arco ultrapassado e o seu aparelho de construção [...] tudo pormenores que nos remetem para a técnica de construção pré-românica. De resto, no séc. X o castelo ainda ignorava a Torre de Menagem. (Barroca, 2000)  [fonte]


Esta torre sobreviveu à intervenção de 1942, mas por algum motivo em 1968 achou-se por bem desmontá-la e montá-la de novo:


Mas ainda não tinha chegado a esta torre a verdadeira intervenção, justificada assim:

Era possível percorrer o adarve, comtemplar a paisagem e mesmo deambular pelo recinto, mas conhecer o interior da Torre de Menagem, por exemplo, era uma experiência impossível devido à altura a que se encontra a porta de entrada. Ficava-se então apenas pela contemplação do seu exterior.  

Coitado do arquiteto, tem de construir uma escada para dar acesso à torre. De certeza, que com a humildade típica dos arquitetos, e de Gonçalo Byrne em particular, a estrutura a construir será o mais subtil possível, apenas focada na sua necessidade enquanto acesso:


Esta é a grande mais valia deste projeto, conseguir implementar sobre uma pré- existência repleta de história e memória, uma estrutura contemporânea composta por oito corpos arquitectónicos, que passa quase despercebida e se confunde com toda a atmosfera primitiva. Inclusivamente os corpos mais relevantes e imponentes conseguiram manter essa linguagem, sóbria e quase transparente, por mérito do arquiteto que conseguiu conciliar a implantação dos novos corpos, a sua fisionomia e materialidade com a estrutura pré-existente. [fonte]

Falta ainda apresentar a cereja no topo do bolo: o "miradouro virtual" na torre de menagem, a razão de existir de toda a estrutura que foi construída dentro da velha torre.


À chegada, somos informados que este supra-sumo do restauro no século XXI avariou pouco depois da inauguração. Provavelmente, as verbas disponíveis para esta obra não incluiam a manutenção dos equipamentos. Consola-nos saber que apesar da parvoíce caducar, o castelo remanesce.