quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Cidade romana de Collippo

Vou iniciar uma rubrica chamada Correio dos Leitores, onde exponho uma criteriosa seleção das centenas de missivas que recebo diariamente no meu correio.

"Eng., sabe qual é o paradeiro da antiga cidade de Collippo? É que já dei cabo das costas a tentar encontrá-la e até agora só descobri um tomo da Enciclopédia Luso-Brasileira, que, por muito lúdico que seja, deduzo não estar relacionado com a imponente povoação romana."

A resposta a esta pergunta não é óbvia, e exige uma leitura atenta do artigo "Collipo: análise dos espaços públicos", de João Pedro Bernardes, e presente no livro "Cidade e foro na Lusitânia Romana".

Na descrição pliniana dos oppida da faixa litoral portuguesa aparece Collippo, como um povoado túrdulo, a sul de Conimbriga. O radical –ippo do topónimo latino parece confirmar este povoado como um dos turdulorum oppida fora da sua área natural (villar, 1999) e que poderá ter as suas origens aquando da migração de populações provocada pela pressão cartaginesa sobre o litoral da Andaluzia, sobretudo a partir de meados do século III a.C. após a derrota na primeira guerra púnica. Situada entre as cidades de Conimbriga e Eburobrittium, na faixa central atlântica portuguesa, o antigo povoado túrdulo passará no período imperial romano a capital de civitas, conforme é demonstrado por várias inscrições (CIL II, 339, 340, 353; CIL IIs, 5232; CIL VI, 16100; Bernardes, 2007, nº 26, 27). Ficava localizada numa colina entre os actuais concelhos de Leiria e Batalha, no sítio de S. Sebastião do Freixo, onde têm sido recolhidos desde o século XIX variados elementos que atestam ter sido ali que teve assento a cidade, de acordo com a tradição e as ruínas ainda visíveis no século XIX (Leal, 1874, p. 70).
(...)
No século XII o espaço já é conhecido por Palácio de Randulfo, tendo-se perdido definitivamente o nome Collippo, apesar da tradição dos séculos seguintes se referirem às ruínas então aí visíveis como os vestígios de uma cidade antiga que teve ali assento. Todavia, o antropónimo Randulfo, de conotação germânica, não deixa dúvidas quanto ao facto do sítio ter tido uma continuidade de ocupação ainda que pouco significativa ao ponto de ter perdido qualquer estatuto de centralidade.
(...)
Todavia, ainda no século XIX, Pinho Leal (1874, p. 70) dá conta no local de alicerces antigos e, em 1909, Tavares Proença Júnior, ao referir-se nos seus manuscritos, guardados no museu de Castelo Branco, a uma inscrição funerária que teria comprado, acrescenta que teria aparecido ao retirarem pedra das ruínas das edificações do oppidum. Como facilmente se depreende, há cerca de cem anos ainda eram visíveis os alicerces de muitos edifícios romanos que continuavam a ser delapidados. A intensificação dos trabalhos agrícolas a par da progressiva introdução de meios mecânicos, passarão, a partir de agora, a arrancar e arrasar as ruínas soterradas. A expressão de um velho dos anos setenta, natural da povoação vizinha dos Andreus, que dizia na sua juventude haver ali “uma estrumeira de cantarias”, referindo-se aos campos em redor de S. Sebastião (Santos, 1971), é assaz elucidativa. De acordo com informações obtidas, era frequente, há cerca de cinquenta anos, ver amontoados de tijolos e cantarias retirados dos campos após as lavras. Muitos desses entulhos chegaram mesmo a ser levados pelo exército que vinha para aqui fazer tiro de artilharia. A área correspondente ao forum e termas, estava, já por essa altura, extremamente destruída, conforme viria a ser confirmado pelas consecutivas campanhas de escavações ali realizadas nos anos 60 e em 1975. Até meados do século, porém, os níveis de destruição do ponto mais alto da colina e dos terrenos que daqui se estendiam até à Quinta, ainda eram relativos. A ocupação desta área por um denso carvalhal deveria ter conservado muitas das ruínas soterradas. A venda da quinta de S. Sebastião aos ascendentes dos actuais proprietários irá, contudo, ditar a destruição desta zona de ruínas. O carvalhal é substituído por um eucaliptal, devendo o arranque do bosque de carvalhos e consequente arroteamento para o plantio de eucaliptos ter provocado destruições significativas. De igual modo, a exploração de saibros e areias na parte mais alta do monte arrasou por completo as estruturas ainda ali existentes, tendo este morro, de acordo com informações recolhidas, sido rebaixado cerca de 2 / 3 metros. Já nos anos sessenta, o arranque de parte dos eucaliptos e o plantio de vinha viria a destruir mais estruturas, tendo havido necessidade de recorrer a tiros de pólvora para rebentar com alguns elementos mais pesados (Brandão, 1972, p. 57). Os anos setenta e inícios de oitenta acabariam por ver a destruição do pouco que ainda existia. Na vertente norte daquele morro, o rompimento da terra em profundidade por meio de uma bulldozer para plantio de vinha teria destruído os poucos muros ainda existentes, tal como os postos a descoberto nas escavações ali efectuadas, e, eventualmente, o que restaria das termas. Do lado sul do morro, entre este e a quinta, o trabalhar de uma bulldozer durante um mês revolveu as terras até ao solo virgem tendo destruído, segundo nos informaram, grandes quantidades de muros soterrados. Perante tanta acção destruidora não é difícil compreender que mesmo uma velha cidade de pedra possa desaparecer quase por completo!

E assim está explicado o paradeiro de Collipo. Escusamo-nos, portanto, a gastar gasolina nesta viagem.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Castelo de Montemor-o-Velho


Desta vez, devido ao parco arquivo da DGEMN deste monumento, não posso apresentar as modificações introduzidas entre os anos 30 e 40 do século passado neste castelo. Mas não é grave, visto que ainda sobra muito assunto.

Pelo menos não fomos impedidos de chegar ao castelo, não podendo dizer o mesmo um casal de idosos que estava à nossa frente. Isto porque apesar de haver uma aparatosa escada rolante com vários lanços encosta acima, estava desligada, visto termos o azar de nos deslocarmos a esta povoação numa altura não eleitoral.


Mas o esforço compensou, e lá em cima somos confrontados com a Igreja de Santo António, cuja demolição foi planeada por altura do restauro do castelo, mas não passou da remoção do recheio e do telhado. [1]



Mais à frente, encontra-se a Igreja de Santa Madalena, que já existia no século XIII e tem uma torre sineira manuelina.



Dentro do castelo, existe a Igreja de Santa Maria da Alcáçova, que foi edificada em 1090, época da qual só restam as absides. O resto data do ínicio do século XVI, sendo portanto característico de um "Manuelino duma primeira fase, naturalista e duma relativa simplicidade construtiva" [2] (também podemos observar a diferença do manuelino tardio no topo dos arcos, que é gótico).


Também dentro do castelo estão as ruínas do Paço das Infantas, que, não faço ideia como, sobrevivem aos vendavais.




E pronto, assim foi um post sobre um castelo sem arquivos da DGEMN.  Mas este castelo tinha muito mais por onde pegar do que só isso.

Castelo de Pombal

Não se poderá negar que no restauro dos nossos castelos medievais não se tenha empregado um critério bem romântico, como que preparando-os para resistir a novos e romanescos ataques da mourama ou dos castelhanos ...


Adriano Gusmão, 1949


O Castelo de Pombal antes do nosso ataque sofreu o das tropas napoleónicas, que o devastou, e da DGEMN, que o reconstruiu com os seus canônes bem definidos daquilo que é o castelo perfeito para ensinar à garotada:







Reparemos no pormenor com que a DGEMN recuperou a sala com os arcos com base nos elementos de cantaria que encontrou. Uma das melhores obras quinhentistas do século XX.

Recentemente houve mais adições, que incluiram um caixote no topo da torre de menagem e outro a meio:



Mas ideias nunca faltaram, e aqui fica a proposta de uma estalagem, algures no século passado:



terça-feira, 4 de agosto de 2015

Castelo de São Jorge

O Castelo de São Jorge foi objeto do mais ousado projeto de restauro já alguma vez feito em Portugal, pelo que vale a pena ficar com as imagens do Sistema de Informação para o Património Arquitectónico [1] e do texto de António Miguel Godinho da Cruz [2]

Historicamente “nos primeiros anos de actividade os princípios norteadores das iniciativas da DGEMN junto dos monumentos nacionais, tal como no período antecedente, pautaram-se por uma reintegração arquitectónica, com base na pureza de estilo, sacrificando elementos de outras épocas, que eram considerados como atentados estéticos à harmonização dos edifícios” (Neto, 2001, p.236).

De facto a intervenção no Castelo de S. Jorge não se afastaria totalmente dessa premissa, pois a DGEMN optaria por construir novas estruturas, erguendo novas muralhas, destruindo casas, isolando torres e colocando ameias exaustivamente “com o fim de restituir ao Castelo de S. Jorge, senão a verdadeira fisionomia primitiva, a unidade, a grandeza e os mais eloquentes títulos do seu valor documental” (Castro, 1935-1990, 25-26, p.34), levando a que o Castelo fosse “restaurado de modo diferente relativamente às suas formas genuínas no Passado” (Santos, 2011, p.183). 

Mais do que intentar reconstruir o seu formato primitivo “a intervenção de restauro logrou transformar o Castelo de S. Jorge num edifício profundamente baseado na imagem cultural do castelo medieval português (…) dando ao edifício uma presumível estrutura idealizada, pertencente a um momento intemporal e que possivelmente o castelo nunca terá possuído” (Santos, 2011, p.184).






A intervenção realizada pela DGEMN de 1938 a 1940 incidiu, numa primeira fase, na expropriação e demolição de edifícios, nomeadamente de estruturas arquitectónicas posteriores à época manuelina - séculos XVII e XVIII - operações de desaterros e remoção de entulhos, abrangendo uma escala monumental que correspondeu a cerca de metade da área da freguesia do Castelo e ainda na sua área adjacente, exterior às muralhas, com maior incidência a Norte e Oeste das muralhas.

Na segunda fase da intervenção, realizaram-se obras de restauro e reconstituição do Castelejo ou Fortaleza; restauro de algumas muralhas da alcáçova; intervenções no piso térreo dos quartéis – antigo Paço da Alcáçova - composição de um conjunto de ruínas - possivelmente do Paço - e abertura de um percurso exterior às muralhas Norte e Oeste.




A intervenção no Castelo de S. Jorge foi avultada na medida em que a sua reconstrução foi geral, quase total e foi sustentada por critérios ideológicos onde verdadeiramente se operava com um espírito de reinvenção histórica, relegando para segundo plano a autenticidade do restauro, procurando-se antes de mais fabricar símbolos, mesmo sendo falsos. Ou seja, esta operação de restauro “seria devastadora, fruto do cariz exemplar que lhe foi atribuído pelo regime” (Correia, 2010, p.403) e modificou em grande escala o tecido urbano envolvente, sendo demolidos vários edifícios do quartel e reaproveitados alguns vestígios de construções anteriores.

As obras efectuadas foram exaustivas e incidiram numa primeira fase sobretudo em escavações e demolições que retiraram da área de intervenção um total de entulho estimado em 120.000 m³, sendo que em alguns casos as escavações atingiram profundidades de 8 metros.

O restauro ou reconstrução do Castelo seria a segunda fase da intervenção, sendo que não se pretendia somente uma reconstituição do edifício. Era necessária a valorização do objecto arquitectónico para que este se transformasse em espaço público.




A intervenção no Castelejo incidiu na demolição das edificações existentes no seu interior, libertando os seus dois pátios de qualquer edifício, para posteriormente se reconstruírem os adarves; as ameias e as seteiras seguindo o modelo dos vestígios encontrados, assim como as torres e as muralhas que ameaçavam ruir.

Toda a área monumentalizada do Castelo seria significativamente alterada, devido à utilização de um conceito de restauro integral que conduzia a reconstituições hipotéticas dos edifícios, pois que “a norma adoptada nos trabalhos de restauro foi baseada no aproveitamento criterioso dos vestígios descobertos nas demolições e metodicamente conduzidas, os quais serviram de modelo para as partes idênticas a restaurar ou fazer de novo” (Silva, 1960a, p. 382).

A única torre construída de novo foi a do muro divisório interior, “como se imaginou que seria primitivamente” (Silva, 1960a, p.385) sendo que se desentaipou a porta de ligação aí existente.






As fissuras na muralha são a maior ameaça para o castelo, sendo que ao longo do tempo houve diferenças abordagens construtivas para resolver o problema:


Continuando na época medieval, do castelo podemos ter uma boa perpetiva sobre Lisboa, e, apesar de não estar muito explícita, da sua muralha medieval, sobretudo o troço designado por Cerca Fernandina construído entre 1373 e 1375 [3] e que podemos ver nesta gravura de 1598:

 [4]

Da Porta da Mouraria até à Torre do Jogo da Pela está hoje a Praça do Martim Moniz, no entanto houve a iniciativa de construir um repuxo que nos remete para a muralha que atravessava o local. Logo acima, em frente de um relvado, foi recentemente exposta a Torre do Jogo da Pela, que até recentemente estava integrada no edificado. No canto superior direito podemos ver a Torre da Santana, à esquerda de uma chaminé em tijolo. Entre as duas torres ainda conseguimos identificar os topos de vários troços da muralha. 


Por fim, uma palavra para as ruínas de uma casa islâmica que foi encontrada há pouco tempo dentro do Castelo de São Jorge, que ainda conserva fragmentos da pintura original:


Para conservar estes frescos foi adotada uma solução que se integra perfeitamente no contexto museológico, ao reconstruir-se a volumetria integral do espaço original através de uma estrutura em aço:

 [5]

Foi posteriormente revestida, permitindo aos visitantes conhecer a morfologia original do conjunto exposto, que de outra forma seria apenas um aglomerado de calhaus.