Mais uma vez, vou citar um trabalho de quem está melhor informado, desta vez
um artigo da autoria de Artur Côrte-Real, coordenador da intervenção arqueológica que pôs a descoberto o claustro deste monumento.
D. Isabel de Aragão decidiu fazer ressurgir o extinto
Mosteiro de Dona Mór, obtendo, em 1314,
autorização do papa Clemente V para a fundação de
um mosteiro da Ordem de Santa Clara em Coimbra. A nova igreja do mosteiro foi concluída, possivelmente,
em 1330, ano em que o bispo de Coimbra,
D. Raimundo, procedeu à sua sagração. Segundo
António de Vasconcelos, foi a partir desta data que se
iniciou a construção do claustro principal, sendo
conhecido que as obras eram já dirigidas pelo
arquitecto Estêvão Domingues.
Por esta altura teve início a dramática repercussão da
escolha do local de implantação do mosteiro. Situado
na margem esquerda do rio Mondego e assente, no
dizer do mesmo autor, quando muito a 3 metros acima da estiagem do Mondego, o mosteiro ficou
desde logo à mercê das invasões das águas do rio.
O que veio, de facto, a acontecer, inicialmente de
forma cíclica mas depressa de forma progressiva e
constante, em consequência do rápido processo de
assoreamento do rio.
Efectivamente, logo em 1331, a água penetrou na
igreja devido a uma cheia de enormes proporções, de
tal forma que chegou a cobrir o túmulo de grande
lavor que D. Isabel havia mandado fazer para si e
colocar na nave central da igreja. Para salvaguardar
o seu mausoléu, e devido ao embaraço que este
provocava no reduzido espaço público da igreja, a
rainha ordenou a construção de uma capela superior,
quase à altura das janelas, onde mandou colocar o seu
túmulo e o de sua neta, a infanta D. Isabel.
No século XV as inundações das áreas monásticas eram
já muito frequentes. O rio ia-se assenhoreando do
edifício, trazendo consigo a decadência das condições
de salubridade e o aumento das doenças9
. No final do
século XVI, o mosteiro estava já inabitável.
As dramáticas condições de vida no mosteiro
conduziram à intervenção do bispo-conde D. Afonso
de Castelo Branco que, entre 1612 e 1615, dotou a
igreja de um pavimento intermédio no prolongamento
da capela funerária. O bispo transformou a nova
capela sepulcral com a construção de um duplo arco
de cantaria destinado a albergar o túmulo de prata e
cristal que havia mandado fazer para a rainha. [
fonte]
Em 1666, Frei Manoel da Esperança dá conta do estado do mosteiro:
Conforme a estas plantas eraõ os mais edifícios, & oficinas da casa: todos
grandes, suntuosos, & perfeitos (…) Porèm a nossa desgraça, que alterou a
soberba do sobredito Mondego pera sepultar entre as suas arèas os mesmos
campos, que se deixavão rasgar pêra ela ter passagem, o fez tãbem atrevido
na fea destruição deste insigne mosteiro santificado por muitas servas de
Deos, & mais em particular por esta S. Rainha. Corta por certo a alma ver
taõ grande perdição; porque de alguas oficinas não ha mais que o seu rastro,
& quasi todo desfeito pelas enchentes do rio. Outras jazem entulhadas com
o lodo, sem se poder usar dellas. O claustro he hua cisterna viva, que nem
no verão se seca. De maneira, que os baixos desta grandiosa machina, ou
já perderão o ser, ou estão desfigurados, ou convertidos em charcos. Pelo
que foi necessário levantar em muitas partes sobre as casas antigas outro
mosteiro mais alto, & passar as capelas, & ermidas pêra a cabeça do claustro,
onde estão coroando, a pezar deste tristíssimo pego, o monte da Santidade. A
respeito destes danos, os quaes hoje são maiores, quis Elrei D. Manoel tirar
d’aqui o mosteiro em virtude de hua bula do Papa Julio II; & se as Freiras
então, por não saírem deste lugar tão sagrado, resistirão à mudança: agora,
que se vem mais apertadas, aceitão com muito gosto, & grandes ventajens
suas (…) [
fonte]
A luta das Clarissas contra a água no velho mosteiro foi-se tornando insuficiente face às calamidades provocadas pelo rio. Foi no sentido de pôr fim a tão tortuosa batalha que o rei D. João IV ordenou, em 1647, a construção de um novo mosteiro no sobranceiro Monte da Esperança. Para esse novo espaço monástico foram transferidas as religiosas em 1677, vendo-se finalmente compelidas a abandonar o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, como desde então passou a ser conhecido. A igreja permaneceu ainda por algum tempo aberta ao culto, tendo posteriormente sido desactivada das suas funções religiosas, em data incerta.
Possivelmente contemporâneas da construção do piso superior, é a destruição das primitivas janelas góticas e a construção de barrocas no seu lugar, e a conversão do óculo traseiro na porta principal da igreja.
O primitivo mosteiro, que passou, a partir de então, a ser designado de Santa Clara-a-Velha, entrou num progressivo processo de destruição e abandono, tendo no século XVIII, a Câmara de Coimbra deliberado que, por razões de saúde pública, fosse demolido o remanescente das construções monásticas arruinadas. A igreja que pela sua solidez havia resistido às investidas arrasadoras das cheias, voltou a aguentar as medidas de demolição decretadas pela autarquia. [fonte]
Contrariamente à generalidade dos conventos, demolidos após a expropriação de 1834 com vista a aproveitar o seu material de construção, o convento de santa Clara-a-velha foi demolido devido às águas paradas que se encontravam no seu interior e que podiam ser fonte de doenças. Como o entulho resultante dessa demolição foi usado para soterrar o local, ainda lá permanecia quando o local começou a ser escavado em 1992, e está hoje depositado debaixo do novo edifício do museu.
Os arrendatários trataram de subdividir o espaço interior, adaptando-o a habitação e curral de animais. Em 1835 a igreja e o terreno do mosteiro passaram a ser propriedade de uma família nobre, através da compra efectuada por António Maria Osório. Foi só a partir de 1925, momento em que a igreja foi
arrendada pelo Estado à família de D. Miguel de
Alarcão, que se iniciaram os primeiros trabalhos de
limpeza e restauro levados a cabo pela Direcção Geral
dos Edifícios e Monumentos Nacionais. Esta operação,
realizada fundamentalmente entre 1928 e 1948,
pretendeu basicamente proceder à remoção das
estruturas que “mascaravam” o monumento e
reconstituir todos os elementos possíveis, ou seja,
restituí-lo à sua configuração primitiva e evidenciar a sua pureza original.
O restauro efetuado durante o Estado Novo tornou o convento numa ruína romântica, visto ter sido escavada a nave, pelo que a água enchia agora novamente o espaço, tal como acontecia antes de ser abandonado pelas freiras.
Na foto de cima, podemos ver que o acesso se passou a fazer por uma janela, devido à porta ter regressado à sua configuração ocular original. Como o restauro do século XXI mexeu pouco na igreja propriamente dita, a janela nunca foi reconstruída, apesar de já não ser usada como entrada.
No entanto, em 1972 a igreja encontrava-se novamente coberta de vegetação.
Comprado pelo Estado em 1976, o edifício apenas saiu
do esquecimento e do seu estado agónico quando, em
1989, o Instituto Português do Património Cultural
(IPPC) lançou um concurso de ideias destinado à
“Valorização da Igreja do Mosteiro de Santa Clara-a-
-Velha de Coimbra”. O concurso foi ganho pelos
arquitectos João Rapagão e César Fernandes, com base
num programa elaborado pelo IPPAR. A água, elemento dominante, permaneceria
envolvendo o monumento. Devido à sua transparência
tornar-se-ia possível visionar os níveis inferiores.
A execução deste projecto não se veio a concretizar,
face ao desenvolvimento da operação arqueológica
entretanto desencadeada, a qual ao permitir a
exumação de importantes testemunhos relativos à
história deste conjunto monástico se
tornou incompatível, no domínio da investigação e da
preservação, com a empreitada prevista.
E assim, a 18 de abril de 2009, quando o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha voltou a abrir portas, tinha o primitivo claustro para mostrar.